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De Gabriel Milão a Rita: o Judeu Invisível na Dinamarca e no Mundo


O afresco da Igreja de Jelling.

Iluminuras, talhados, estátuas e outros. Como em toda a Europa, as produções artísticas na Dinamarca durante a Alta Idade Média eram monopolizadas para fins eclesiásticos. Entre elas, destaca-se o afresco da igreja de Jelling, painéis de forte influência bizantina datados do século XII. Dentre os vários personagens retratados na pintura, certo sujeito curioso se destaca: um homem dotado de um Judenhut, chapéu utilizado voluntariamente ou sob imposição governamental por judeus do Sacro Império Romano-Germânico. Entretanto, inusitadamente, a presença judaica era nula no país naquele tempo. Por que representá-lo, então?

 

Esnoga de Amsterdam, século XVII.

Somente séculos depois da confecção do afresco que o país teria seus primeiros habitantes de fé mosaica. Mais precisamente, após a Paz de Vestfália, diante de uma temível crise financeira, a Dinamarca abriu suas portas para os judeus sefaraditas, expulsos da Península Ibérica e agora vivendo em cidades como Hamburgo, Amsterdam e Londres, destacando-se como exímios mercadores; seu lucro, claro, era de interesse para a coroa dinamarquesa. Entre eles encontrava-se Gabriel Milão, que vivia na capital holandesa como comissário do reino escandinavo. Devido a suas diversas conexões pessoais e habilidade com idiomas, o comerciante galgou a escada social e logo foi indicado para a posição de Governador das Índias Ocidentais Dinamarquesas, sendo o único judeu na história do hemisfério ocidental a ocupar um cargo colonial de tão alto nível.


A sinagoga das Antilhas Dinamarquesas (atualmente Americanas) foi construída no século XVIII. Seu chão de areia é uma marcante característica das congregações judaicas espano-portuguesas do Caribe.

Porém, nem tudo era tão simples quanto parecia. Chegando no arquipélago caribenho, Milão descobriu que o último administrador não apenas tinha acabado com as reservas monetárias do Estado, mas também ficou devendo dinheiro aos senhorios locais. Lidando simultaneamente com saques espanhóis e desconfianças internas, o judeu tinha de agir com mão de ferro para não perder sua atípica posição. No entanto, após meses sem receber notícias das antilhas - afinal de contas, o governador não queria que ninguém descobrisse a precária situação sob seu controle -, Copenhagen envia uma frota à capital colonial, captura Milão e o leva de volta ao velho continente. Lá, ele é julgado por traição e usurpação de poder, e, numa decisão claramente influenciada pelo substancial anti-semitismo da época, é condenado à morte.


A administração caribenha de Gabriel Milão foi curta, mas sua drástica conclusão marcou o inconsciente dinamarquês. Mesmo que fossem tratados relativamente bem, não sendo obrigados a viver em guetos ou a pagar impostos étnicos como em outras nações européias, os judeus foram estereotipados como mesquinhos, teimosos e oponentes da cristandade pela população comum da Dinamarca - mesmo que grande parte dela nunca tenha visto um judeu pessoalmente. Tal processo teve como estopim os Protestos Hep-Hep, uma série de pogroms em vários países germânicos que atingiu Copenhagen em 1819. Por 5 meses, os judeus da cidade tiveram suas lojas saqueadas, suas casas queimadas, seus corpos e mentes agredidos.


Protestos Hep-Hep em Copenhagen.

De todo modo, o efeito dominó da emancipação israelita principiado por Napoleão logo chegou à Dinamarca, e, apesar de protestos iniciais, em pouco tempo o país escandinavo tornou-se um grande lar para sua comunidade judaica; um verdadeiro exemplo de coexistencia para o mundo. Enquanto as tensões aumentavam nos países vizinhos, como na Suécia-Noruega, que nem permitia-os em seu solo, ou na Alemanha, que tinha fortes opositores políticos a tal integração, os judeus dinamarqueses vivenciaram altos índices de prosperidade e assimilação cultural, e foram plenamente acomodados em sua sociedade durante o século XIX.


Essa relação amigável - e um tanto suis generis - deu-se não apenas através do cumprimento das reformas liberais implementadas pela coroa copenhaguense, mas também pelo surgimento de um nacionalismo romântico peculiar na Dinamarca. Diferente de outras Primaveras, tal movimento caracterizou-se na noção de pequenez, de que o orgulho patriótico deve prover das tradições regionais e do relacionamento com sua comunidade. Sendo assim, quando o maior genocídio da história da humanidade bateu no portão dinamarquês, era óbvio que a população não iria entregar nenhum compatriota - independente de credo.


Braço armado do Partido Nazista Dinamarquês durante a ocupação.

Mesmo dotada de uma minúscula, por vezes irrelevante comunidade judaica, a Dinamarca viu no desejo de extermínio nazista uma grande afronta à soberania nacional, numa relação que já vinha sendo desgastada pela ocupação militar alemã. Devido à posição dinamarquesa como grande provedora de grãos, laticínios e outros mantimentos ao Reich, Copenhagen conseguiu adiar o debate sobre sua “questão judaica” por alguns anos, até que em 1943 - após derrotas do Eixo na África saariana e em Stalingrado -, decretos de deportação imediata foram emitidos pela Alemanha. Então, a resistência local arquitetou um plano para salvar os mais de sete mil judeus do país: levá-los de barco até a Suécia neutra, onde sua segurança seria garantida. Após diversas negociações com o Estocolmo, incluindo um apelo pessoal do físico Niels Bohr ao rei Gustavo V, o asilo é finalmente garantido e o projeto é posto em prática.



Os judeus dinamarqueses em fuga.

Diversas camadas da sociedade dinamarquesa ajudaram durante o trânsito, desde os camponeses que esconderam os judeus em suas casas, passando pelos magnatas que financiaram o processo, até os barqueiros que cruzaram o mar. Na calada da noite do ano-novo judaico, quando se imaginava que todos os judeus estariam comemorando o feriado em suas casas, os alemãs levaram a cabo seu plano de deportação, enviado equipes a todos os distritos do país com presença israelita. A maioria, entretanto, voltou de mãos vazias. Por uma mistura de incompetência nazista, empatia danesa e pura sorte, era tarde demais: a população judaica já estava em solo sueco.


Dentre todos os países da Europa, nenhum teve uma baixa tão ínfima quanto a Dinamarca, onde 99% dos judeus sobreviveram à guerra. Diversos cidadãos foram condecorados como Justos entre as Nações, e seu legado é um dos maiores orgulhos da sociedade dinamarquesa contemporânea, o que fica claro pela maneira como o episódio ainda é referenciado em vários espaços culturais do país. Com isso, chegamos em Rita.


Para aqueles que não estão familiarizados com a série televisiva dinamarquesa - a mais famosa do país disponível no catálogo de um certo serviço de streaming -, “Rita” gira em torno da excêntrica indivídua homônima em sua jornada pelo corpo docente da escola pública local, com um roteiro focado nos diversos relacionamentos com aqueles que a orbitam, sejam seus filhos, colegas, alunos ou namorados. Abordando diversas pautas, tais como imigração, sistemas escolares, homofobia, saúde mental, adolescência e outros, a trama firma-se como um espelho dos conflitos interpessoais da Dinamarca contemporânea, onde cada episódio foca em uma pauta específica, além de trazer comparações com o passado da nação e reflexões para o futuro. Pessoalmente, virei fã logo de cara e devotadamente consumi seu conteúdo. Entretanto, como para cada regra exige uma exceção, certo episódio me desagradou.


Rita, a perspicaz protagonista.

Abrindo a quinta e última temporada, o capítulo “Fake News” conta a história de um dos alunos de Rita, que, apesar da pouca idade, subitamente afirma-se um negador do Holocausto. Entre outras mentiras que o garoto conta, como a falsificação do Programa Apollo, fica claro que ele apenas está regurgitando falácias conhecidas da internet, seja lá qual for seu propósito. De qualquer maneira, como claramente o assassinato de seis milhões de judeus é um assunto muito mais polêmico, complexo e importante do que os outros conteúdos enganosos que ele apresenta - informações adiquiridas em “chats da internet”, segundo o próprio -, o episódio foca nessa questão.


O meliante em questão.

Uma das grandes marcas de “Rita” é, não importa o quão dramático seja o tópico em foco, a série sempre o tratará com um mínimo de leveza e sarcasmos. Não que os temas sejam ironizados, longe disso, o respeito máximo é sempre presente, mas eu genuinamente esperava mais na abordagem do Shoah (como o genocídio é chamado em hebraico). Enfim, no decorrer da história, sem mencionar os vários subplots do episódio - que na realidade são bem mais importantes para o seriado no geral que o foco de “Fake News” - logo os pais dos outros alunos descobrem que há um pequeno indivíduo espalhando propaganda neonazista pela escola e uma reunião emergencial é convocada.


“Se for preciso, vamos combater o fascismo!”, um dos responsáveis clama. “Só quero dizer que não há fascistas em nossa casa. O bisavô de Viktor até levou judeus à Suécia de barco durante a Guerra”, responde o pai do garoto problema. A tensão do cenário cresce, até que Rita chega com a tal criança e surpreende-o dizendo que, na realidade, nada passou de um projeto para ensinar a seus colegas como é fácil espalhar notícias falaciosas e que devemos tomar muito cuidado com isso. Em protesto, Viktor abre a boca para reafirmar sua posição de extrema-direita, mas é instantaneamante calado pela salva de palmas dos adultos, orgulhosos do seu “trabalho”. “Seu bisavó ficaria tão orgulhoso de você”, fala o pai. Abrindo um sorriso, ele apenas segue o fluxo da conversa e se despede de sua professora. No final do episódio, o menino volta à escola para agradecer a Rita por salvar sua pele e dizer que entendeu a situação, demonstrando como, no final das contas, ele só queria chamar atenção.


Tá, mas e daí? Rita aborda muitas questões da Dinamarca atual, porém sempre usando os personagens vítimas das pautas, como nos episódios sobre xenofobia, com exemplos de histórias de imigrantes; ou sobre machismo, envolvendo as personagens femininas principais da série. Por que na hora de falar da negação do holocausto, um dos pilares do antissemitismo moderno, não se tem um judeu na série? Por que apenas apresentar a perspectiva do dinarmaquês culturalmente cristão, e não usar um um personagem que sentiu na pele, direta ou indiretamente, a tragédia, como um sobrevivente dos campos de extermínio ou um aluno cujo avô tenha escapado das garras nazistas?


Apesar de tudo, o antissemitismo ainda persiste na Dinamarca. Em 2015, A Grande Sinagoga de Copenhagen - o principal estabelecimento judaico do país e uma das únicas sinagogas dos territórios ocupados a sobreviverem a Segunda Guerra - sofreu um ataque terrorista, deixando um morto e dois feridos.

A resposta é simples: seja em Jelling da Idade Média, nas Antilhas Dinamarquesas da Idade Moderna ou na Dinamarca da Idade Contemporânea, o judeu é invisível. Como ele será retratado, bem ou mal, ou como aqueles que interagem com ele serão vistos, justos ou perversos, não depende de seu julgamento mas sim daqueles que o dominam. Infelizmente, o país escandinavo não é o único com questões em relação a sua herança judaica, e, mesmo que na realidade nem seja tão antissemita em comparação às outras nações européias, seu caso serve como um exemplo preciso. A trajetória dos judeus na Dinamarca, com seus altos e baixos, convida-nos a pensar não apenas na história daqueles menos favorecidos que muitas vezes têm pouca chance de uma representação dignamente autêntica na mídia e no imaginário social, mas também dos vários indivíduos ao nosso redor que muitas vezes avaliamos sem realmente conhecê-los. Quem é seu Judeu Invisível?


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